segunda-feira, setembro 11, 2006

Naftalina

Original em: 11 de janeiro de 2006

Olhou pela fresta que as portas do grande armário de carvalho propunham. Armário do qual ela sabia a história: fora passado de geração a geração, a cada casamento da família, todos – até agora – duradouros como rocha. Nem o torpor proporcionado pelo excesso de naftalina fazia com que os níveis de adrenalina baixassem. Observou a conversa:
– Ricardo... – Júlia dizia lenta e engasgadamente, enrolada num roupão que delineava bem o grande vale criado entre seus seios – como foi no trabalho?
– Aconteceu algo, amor? Sua voz, suor na testa... – Fitou duas toalhas sobre a cama – O que minha toalha faz molhada sobre a cama?
Amanda sentiu o almoço voltar à garganta. Mesmo com os grossos casacos de inverno (que Júlia ganhara de Roberto na viagem de lua-de-mel) a comprimindo no armário, um frio passou pela barriga. “Por que usei a toalha dele? Meu Deus!”, pensou ela.
– É, bem, é que eu fui tomar banho e troquei de toalha, peguei a sua por engano e logo destroquei, deixando as duas molhadas, benhê! – não convencendo a ninguém.
– Júlia, quando nos casamos você não era daltônica! A minha toalha é azul, e a sua é rosa. Que diabos você bebeu pra confundir as duas? Bem, esqueça... Já que você tomou o banho e está tão cheirosa, que tal nós...
Júlia travou internamente. A língua de Amanda fizera um ótimo trabalho a instantes e a ultima coisa que ela queria agora era mais um orgasmo. Afinal, o seu esposo era bom de cama – o gozo era uma conseqüência de deitar na cama com ele. Amoroso e bem sucedido monetariamente, ele era o que sintetizamos por “bom partido”. Amanda surgiu numa curiosidade, e se tornou um vício. Ela nem sabe bem por que. Ao que consta, a Amanda, que também tinha seu relacionamento, a buscou pela falta de carinho por parte de seu parceiro – sempre distante. Amanda tinha um motivo, ela não. A curiosidade passou, os encontros ficaram como um costume. Seria dó da Amanda? Não, ela não sabia, e não podia pensar nisso agora. Tinha de proteger a integridade física da amante e escapar do marido.
– Ahhh, benhê!, eu to tão cansada...
– Cansada do que, Júlia? Você está enferma? Se quiser, eu te levo no médico agora mesmo...
– Não! – interrompeu Júlia abruptamente – Não preci...
Antes de Júlia concluir a frase, três pelotas brancas rolaram do Armário. Eram bolinhas de naftalina.
– Ué, esse armário está vivo, Júlia?
A fresta permanecia, e Amanda estava cada vez mais confusa. O cheiro da Naftalina, agora, era o que a mais preocupava. Como pode pisar nas leves e ocas bolas brancas naquele instante? Ela deveria permanecer o mais imóvel o possível, mas um fogo, algo a mechia. Não era um fogo sexual, era um fogo amoroso. Não de lembrança do parceiro, doce e que acreditava ser único (ele não significava nada a ela), e sim de vontade de ter Ricardo. Dissera a Júlia que deitava com ela pelo desleixo de seu parceiro, mas sabia que era mentira. Queria ter Ricardo para si. O amor dele para com Júlia a enojava em todos os encontros de família. Tinha inveja. Por que uma prima como Júlia conseguiu um homem daqueles e ela nada? Mas agora era tarde para pensar nisso. Com uma das mãos tampava sua vergonha, e com a ponta dos dedos mantinha a fresta das pesadas portas de carvalho – observando a aproximação dele.
Ricardo, que não era nem um pouco besta, observou que alguém estava dentro do armário. Abaixou para pegar as pelotas de naftalina ao mesmo tempo que uma lágrima caia de seus olhos. “Por que?”, perguntava-se. Tentava ser o melhor marido para Júlia. Sonhava em ter filhos com ela. Casaram-se com festa, furor, amor – ele acreditava. Mas agora, um homem em seu armário... Era o que ele presumia: um homem. Ser uma mulher nunca passara por sua cabeça, mesmo sendo uma possibilidade na atual conjuntura. Decidira – enquanto a mão ia até segunda bolinha, com a primeira protegida entre seus dedos suados – que sua moleza e bondade acabaram ali. Sempre fora traído tentando ser bom, com Júlia acreditava ser diferente. Tinha comprado de presente uma bela faca de acampamento, algo que adorava fazer com Júlia. Iria enfiar na barriga do infeliz, sem dó. Crime passional, como bom jurista ele sabia, seria fácil desculpar – ainda mais se fosse a delegacia noticiar todo o ocorrido.
– Júlia, disse Ricardo enquanto brincava com as pelotas de naftalina, eu pensei que você fosse diferente.
– Não estou entendendo, Júlia disse com um pesar de quem fora pego.
– Todo o amor, carinho, aonde foi? Você me ama? Era o que dizia. Mentiras, tolas mentiras. Você não é nada, não honra o que é: uma mulher!, que devia se dar ao luxo de manter – ao menos – o respeito e a fidelidade por quem te sustenta.
Ricardo puxou a pesada porta junto com algo. Amanda sentiu a lâmina fria penetrar a pele de seu abdômen logo após o som do pacote de presentes se rompendo. Caiu. Quando viu quem era, mulher e Amiga da família, e como estava, nua – ainda tampando as vergonhas úmidas -, Ricardo silenciou. Júlia desmaiou. E Amanda, pelo contrário do presumível: sorriu. Morreu feliz, com a mão de seu amor sobre seu colo, juntamente com suas lágrimas iniciadas a cair, última cena que seus olhos viram.

Texto de minha autoria.

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